MÓDULO 02 – INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA
BÍBLIA[1]
1.
Introdução
A
Bíblia não é um livro. É uma coleção de livros de diferentes épocas, lugares,
gêneros e temáticas. A leitura da Bíblia
é pessoal e livre, porém, sua interpretação depende de um instrumento, de um
método. O leitor atual se distancia no tempo, no espaço e na cultura do redator
daqueles livros. Para a aproximação mais proveitosa da leitura desses textos antigos
recorremos ao auxílio de algumas ciências como a história, a geografia, a
hermenêutica.
2.
Histórico
da redação e formação da Bíblia
O
nome bíblia vem da língua grega biblía, plural de biblíon “livrinho”. Os judeus
a denominavam de “Os livros sagrados”, na história coexistiram diversos nomes.
No século V, a partir de João Crisóstomo, a expressão Tá Biblia começa a ser
título.
Os
termos “antigo testamento” e “novo testamento” assinalam as duas seções da
Bíblia. O primeiro é escritura exclusivamente judaica. Já o segundo é judaico e
cristão. Neste curso, chamaremos o AT de Escrituras Judaicas e o NT, de
Escrituras Cristãs. Testamento reproduz o hebraico berît “aliança”. Paulo é o
primeiro a usar esses nomes, sendo depois adotados pelos escritores cristãos do
século III.
O
processo de redação da Bíblia dependeu de muitos séculos. Não se trata de um
texto unificado, linear. O AT[1] foi escrito de 1300 a. C. até 50 a. C. O NT
foi elaborado dos meados do século I (51 d. C.) ao início do século II (100 d.
C.).
Os
títulos dos livros são tardios e alusivos ao conteúdo. Os judeus nomeavam os
livros com as primeiras palavras do texto: Bereshît (“no princípio”) = Gênesis.
A
divisão em capítulos data somente do século XIII, feita pelo cardeal Estêvão
Langton e a subdivisão em versículos de 1551, por Robert Estienne.
As
divergências na organização dos livros da Bíblia decorrem da diferença entre a
Bíblia Hebraica (Palestina) e Bíblia Grega (Alexandria): Os salmos são
numerados de forma diferente, na Bíblia grega os salmos9 e 113 são divididos em
dois.
Os
manuscritos eram feitos em pergaminhos (até o século II d. C.), que se
desgastavam rápido, chegaram a nós, cópias de cópias. Na antiguidade e na idade
média, eram poucas pessoas alfabetizadas. A Bíblia foi transmitida de gerações
em gerações graças aos escribas profissionais e aos monges copistas. A sua
propagação maior se deu a partir da invenção da imprensa pelo alemão Johannes
Gutenberg em 1439.
3.
As
partes que compõem a Bíblia
A tradição cristã
ratificada no Concílio de Trento (1545-1563) reconhece 46 livros do AT. São
divididos em: Históricos (21), didáticos (7), proféticos (18). Os cinco primeiros
livros formam o Pentateuco. Na antiguidade não existia uma lista fixa de livros
sagrados. Mas uma tradução dos livros judaicos do hebraico para o grego feita
em Alexandria (Egito) do século III ao II antes de Cristo, esta continha todos
os livros hoje conhecido como deuterocanônicos (para os católicos) ou como
apócrifos (para os evangélicos). Porém, nos fins do século I, o concílio de
Jâmnia determinou que somente os livros escritos em hebraicos seriam canônicos
e isto excluía os deuterocanônicos.
O NT é composto por 27
livros, sendo: Históricos (5), didáticos (21), profético (1). Apesar de ter
havido várias listas divergentes dos textos canônicos do NT, o consenso
tornou-se unânime a partir de 397 depois de Cristo com o Concílio de Cartago.
A Bíblia Hebraica,
estritamente falando, é dividida em: Torah (Pentateuco), Nebiim (profetas),
Ketubim (os escritos), ao todo 39 livros. Este são os livros reconhecidos pelos
seguidores do judaísmo. A edição da Bíblia Hebraica é conhecida como Tanak.
4.
As
línguas originais
A Bíblia não foi
escrita em português. Lemos traduções. Este fato é importante. O hebraico, o
grego e o aramaico foram as línguas originais.
Em
hebraico foi escrito todo o AT, com exceção dos livros chamados
deuterocanônicos. Alguns textos poucos foram redigidos em aramaico como seis
capítulos de Daniel, três de Esdras e um versículo de Jeremias.[2]
Em
grego comum, além dos já referidos livros deuterocanônicos do AT, foram
escritos praticamente todos os livros do NT. Segundo a tradição cristã, o
Evangelho de Mateus teria sido primeiramente escrito em hebraico.
5.
Traduções
e versões
A
dispersão do povo judaico exigiu uma tradução dos livros para o grego. Esta foi
concluída no ano 100 a. C. Chamada de versão dos Setenta, posteriormente
adotada pelos cristãos.
No
século II a. C., houve muitas versões, havia divergências quanto à aceitação
por serem imperfeitas. No século V, Jerônimo realiza uma tradução ótima para o
latim, conhecida como Vulgata. Recomendada pelo Concílio de Trento.
Para
o português, a mais antiga e completa foi a tradução de João Ferreira de
Almeida (1628-1691) publicada em 1753. É importante observar que atualmente não
possuímos o texto original. Há apenas fragmentos de cópias antigas. As
traduções não são exatas.
Mesmo
diante dessas limitações históricas a fé cristã professa que a Bíblia é
inspirada[2] (2Tm 3, 16-17), fielmente transmitida e preservada de erros em
questões de fé e moral. A esta preservação de erros em questões fundamentais
dá-se o nome de inerrância[3]. Mas isso
não significa que não existam imperfeições materiais no texto bíblico.
6.
Canonicidade
Havia
diversos escritos religiosos judaicos. Foi feita uma distinção e seleção dos
livros inspirados. A Bíblia Grega do século I adotou livros não-contidos na
hebraica. A questão só foi resolvida no século II. O primeiro cânon oficial do
NT surge no Sínodo de Hipona, em 393. Lutero retomou o debate e a tradição
protestante preferiu o cânon judaico. O Concílio de Trento reconheceu oficialmente
o cânon alexandrino.
Quando
se fala em cânon, estamos dizendo da lista de livros aceitos como inspirados
por Deus. Portanto, existem dois cânones: Hebraico e alexandrino. O cânon
hebraico contém 39 livros no AT. E o cânon alexandrino possui 46. Os livros que
foram acrescentados são chamados de deuterocanônicos[4]. Esses livros são
Tobias, Judite, I e II Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc e trechos de
Ester (10, 4 a 16, 24) e Daniel (3, 24-90, e capítulos 13 e 14). A tradição
católica acolheu o cânon alexandrino e a protestante, o hebraico.
7.
A
Bíblia como literatura
A
Bíblia é a literatura antiga dos judeus e dos cristãos. Ou seja, é um conjunto
de escritos de vários gêneros e estilos. Cada modo de escrever exige também um
modo próprio de interpretar. Tradicionalmente, distinguem-se dois sentidos: O
sentido expresso pela palavra (sentido literal) e o sentido espiritual transmitido
pelo texto (sentido pleno).
Existem
dois estudos próprios da interpretação da Bíblia que são a exegese e a
hermenêutica. Através desses estudos estabelecem-se critérios para entender um
texto. É preciso considerar os seguintes aspectos:
Condicionamentos de tempo
- Os livros da Bíblia são fruto do seu tempo. Por isso, se quisermos conhecer a
mensagem de Deus, temos de conhecer o tempo e as circunstâncias históricas em
que foi escrito cada um desses livros.
Condicionamentos de espaço
- Uns nasceram na Arábia e outros na Palestina; uns no mundo helênico e outros
no Império Romano; cada qual com o ambiente próprio, e o livro é filho também
do ambiente que o viu nascer.
Condicionamentos de raça
- Os livros da Bíblia procedem quase todos da raça semita e mais concretamente
do Povo Judeu, que tem um modo de pensar e de se exprimir muito diferentes do
nosso, que é preciso conhecer para entender a Palavra de Deus.
Condicionamentos de cultura
- Além da cultura, também da mentalidade e da ciência dos autores que
trabalharam na composição dos livros sagrados. Alguns livros levaram séculos a
formar-se e são obra de muitos autores com mentalidades e cultura diferentes, e
embora fossem inspirados, não foram privados da sua personalidade.
8.
Gêneros e figuras de linguagem
Em
se tratando dos gêneros, temos: Poesia e prosa. Do gênero poético, temos na
Bíblia: canção (canções de guerra, de culto e canções profanas), poesia
sapiencial (poemas didáticos, coleções de sentenças), sentenças e máximas e
literatura profética (repreensões, ameaças, consolações, confissões e
oráculos). Quanto à prosa: leis, documentos (contratos, decretos e
genealogias[5]), preces, apocalipses (descrições do juízo final em forma de
visões), narrativas edificantes (novela histórica), narrativas biográficas dos
profetas, história da salvação, profecias e cartas.
O
texto bíblico possui várias formas de expressão. Às formas indiretas e
figuradas de se expressar damos o nome de figuras de linguagem. É importante
conhecer as mais usadas: Comparação, metáfora, parábola, alegoria, fábula,
símbolo, sinédoque, metonímia, antonomásia e hipérbole.
Explicação
das figuras. Metáfora: É uma comparação abreviada. Metonímia: Troca de nomes
relacionados entre si. Parábola: Uma narrativa que faz uma comparação
imaginária. Alegoria: Uma metáfora, com sentido transferido, por semelhança.
Fábula: Narrativa de cunho moral, na qual seres inanimados ou animais se
comportam como o ser humano. Sinédoque: Designação do todo pela parte.
Antonomásia: Substitui o nome por um qualificativo. Hipérbole: É um exagero de
linguagem.
9.
Geografia
O
ambiente onde foi escrita a Bíblia envolve as regiões da Palestina, as
comunidades gregas e Alexandria. Os livros protocanônicos nasceram na
Palestina. Os deuterocanônicos surgiram no ambiente grego de Alexandria. O NT
foi escritos em diversos lugares, desde a Palestina até as comunidades gregas.
Portanto, duas culturas influenciaram a mentalidade presente nos textos:
Cultura semítica e cultura helênica.
10.
História
Para
que se compreender os escritos bíblicos é necessário ter uma noção da história
de Israel e do Império Romano. Em síntese, esta é a linha de tempo da Bíblia:
Antes de Cristo (AT)
1926: Abraão
migra para Arã.
1800-1200:
Tradição oral.
1200: Período
tribal – o povo se instala em Canaã.
Primeiros
fragmentos escritos (Código da Aliança)
1150-1050: tempo
dos juízes.
1000: Primeiros
escritos.
1040-922: Fase
de ouro – os reis Saul, Davi e Salomão.
922-605: Reino
de Judá – sul.
922-720: Reino
de Israel – norte.
597-538: Exílio
na Babilônia.
515:
Reconstrução do templo.
333-135: Dominações
dos selêucidas e lágidas.
167: Revolta dos
Macabeus.
64: Os romanos
dominam a Palestina.
Depois de Cristo (NT)
6-29: Vida e
ministério de Jesus.
30: Primeiras
comunidades.
70: Destruição
de Jerusalém e diáspora.
90: Expansão do
cristianismo.
135: Destruição
de Jerusalém e diáspora final.
11.
Cultura
As
duas culturas que influenciam a redação dos livros bíblicos são bem diferentes.
Os gregos são dados ao comércio, à educação, pensam o mundo racionalmente.
Esses acreditam em vários deuses, seu sistema político é a democracia, vê o
homem constituído de corpo e alma, existem o mundo material e o mundo
espiritual, imortalidade da alma, céu e inferno. A expressão máxima dessa
cultura é a filosofia. Sua língua foi o grego. Os homens mais importantes
Homero, Sócrates, Platão, Aristóteles e Alexandre Magno.
Os
judeus acreditavam em um só Deus, davam mais importância à religião, o sistema
político é a teocracia, o homem é corpo, existe apenas o mundo material, não se
pronunciam sobre imortalidade, acreditam apenas na morada dos mortos. A
expressão máxima dessa cultura é o monoteísmo. Suas línguas foram o hebraico e
o aramaico. Os homens mais importantes Abraão, Moisés, Davi, Salomão, Jesus e
Paulo.
12.
Judaísmo
O
antigo testamento pertence ao judaísmo assim como o novo surge num cenário
também judaico. Por isso, vamos entender um pouco sobre judaísmo. Esta religião
surgiu da tradição de Moisés, crê em um só deus chamado YHWH, possui um pacto
com essa divindade, crê que a Torá foi dada por ele. Os judeus guardam o
sábado, não possuem sacerdotes atualmente, os rabinos são os dirigentes do
culto, a sinagoga é o seu templo. O Antigo Testamento é a sua bíblia, chamada
de Tanakh. Mas contém os protocanônicos.
O
pacto divino foi estabelecido com Abraão. Os fundamentos da fé estão na lei
dada por Moisés. O judaísmo surgiu somente a partir do exílio. Além da Tanakh,
os judeus possuem comentários bíblicos com o Talmud e a Mishná.
O
corpo doutrinário do judaísmo não possui as noções de céu, inferno, corpo, alma
e nem vida após a morte. Os adeptos esperam um messias e um mundo futuro de paz
que acontecerá neste mundo mesmo.
13.
Estrutura da literatura bíblica
Para
efeito de estudo, o AT é subdividido em: Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico,
Números e Deuteronômio), História deuteronomista (Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel,
1 e 2 Reis), Obra do cronista (Crônicas, Esdras e Neemias), Literatura
profética (Isaías, Jeremias, Ezequiel etc), Literatura sapiencial (Jó, Provérbios),
Poéticos (Salmos).
No
NT, temos: Sinóticos, Mateus, Marcos, Literatura Lucana (Lucas e Atos),
Literatura Paulina (cartas de Paulo), Cartas católicas (Tiago, Pedro, Judas),
Literatura Apocalíptica (Apocalipse de João) e Literatura Joanina (Evangelho de
João, cartas de João).
PRINCÍPIOS PARA A INTERPRETAÇÃO DOS
TEXTOS BÍBLICOS
A
hermenêutica é o estudo sobre os princípios e o método de interpretar textos. O
texto permite várias interpretações, mas ele estabelece por si um limite entre
aquilo que se pode dizer dele e aquilo que não se pode dizer. Quanto mais o
leitor se dispuser de instrumentos adequados, melhor será sua compreensão do
texto.
Enquanto
a ciência geral da interpretação é a hermenêutica, a exegese é o exame do texto
bíblico. Há várias maneiras de examinar o texto. O leitor pode realizar uma
leitura devocional com o objetivo de ouvir o que Deus tem a lhe falar ou pode
realizar uma leitura acadêmica procurando aprofundar-se no sentido literal,
social ou histórico do texto.[3]
Alguns
critérios para serem adotados na leitura do texto:
1. Contexto:
Leia o texto completo até onde pode ser delimitado um trecho com sentido único
(perícope); não reduza suas leituras a versículos isolados;
2. Tempo:
Procure localizar a época em que se pode localizar aquele texto, mesmo que seja
de modo aproximado;
3. Lugar:
Do local, procure identificar de onde o autor está falando, considera sua
inserção social em determinado contexto.
4. Texto:
Identificar as marcas linguísticas no texto que permitem a compreensão do
sentido (nomes, lugares, expressões, verbos) e dentro de qual gênero literário
se classifica o texto;
5. Segmentação:
Divida o trecho escolhido em quantas ideias ou conjunto de ideias forem possíveis.
1.
Exercício
com o salmo 1:
1.
Feliz o homem que não procede conforme o conselho dos ímpios, não trilha
o caminho dos pecadores, nem se assenta entre os escarnecedores.
2.
Feliz aquele que se compraz no serviço do Senhor e medita sua lei dia e
noite. 3. Ele é como a árvore plantada na margem das águas correntes: dá
fruto na época própria, sua folhagem não murchará jamais. Tudo o que empreende,
prospera.
4.
Os ímpios não são assim! Mas são como a palha que o vento leva.
5. Por isso não suportarão o juízo, nem
permanecerão os pecadores na assembleia dos justos.
6.
Porque o Senhor vela pelo caminho dos justos, ao passo que o dos ímpios
leva à perdição.
Perguntas necessárias
ao texto:
a) De
quem o texto fala? Dos justos e dos ímpios.
b) Qual
é o tempo do texto? O tempo presente (“não procede, não trilha, se compraz”);
no versículo 5, há uma predição do futuro (“não suportarão”).
c) Como
podemos segmentar o texto?
i.
Do
versículo 1 ao 3: O autor descreve e elogia o justo
porque não seguem e nem procedem como os
ímpios, os pecadores e os escarnecedores.
ii.
No
versículo 4: O assunto agora é o ímpio. Há uma
comparação (“Os ímpios não são assim!”). Os ímpios “são como a palha que o
vento leva”.
iii.
Versículo
5: Há um marcador que introduz o destino dos ímpios
(“não suportarão o juízo” / “nem permanecerão ... na assembléia dos justos”).
iv.
Versículo
6: A conclusão mostra qual é a situação dos justos e
dos ímpios diante do Senhor (vela pelos justos / o caminho dos ímpios é o da
perdição”).
d) Qual
é a idéia principal do texto? Há os justos e os ímpios. Os justos têm sua
conduta aprovada por Deus, mas os ímpios andam no caminho da perdição.
Acesso aos eslaides: Clique aqui.
[1]Texto para o Estudo Teológico em
São Barnabé, a 30 de março de 2019.
[2] FRANCISCO, Clyde T. Introducción al Antiguo Testamento. Casa
Bautista de Publicaciones, Casa Bautista de Publicaciones, 1978, p. 20.
[3] ZABATIERO, p. 9.