MÓDULO 01: TEOLOGIA FUNDAMENTAL
A nossa primeira incursão no terreno da teologia é analisar os fundamentos desse conhecimento. A fonte do conhecimento teológico é a experiência da fé. Então, primeiramente, é necessário compreender a virtude da fé e a natureza do conhecimento do mundo a partir daquele que crê. Uma atitude crítica em relação ao tema evita que caiamos no fideísmo: uma crença ingênua em tudo que as pessoas nos dizem. Agostinho de Hipona (354-430) dizia “crê, para que entendas”. Anselmo de Cantuária (1033-1109) completou “crê, para que entendas” e “Entende, para que creias”. É necessário partir da fé para compreender seus mistérios, mas compreendendo-os, enriquece-se a fé, por conseqüência.
Teologia no mundo contemporâneo
Na era contemporânea, a partir dos avanços dos conhecimentos do homem a verdade passou a ser histórica e situacional, portanto, relativa. Não existe verdade, existem discursos com sentido. O homem possui questões básicas de sua existência e para cada época e lugar há diferentes respostas. Para a origem da vida: na Antigüidade, a religião deu uma resposta baseada na experiência da época e do lugar. Por exemplo, a Bíblia diz Elohim criou o céu e a terra e organizou tudo. Os filósofos defenderam a geração espontânea. A ciência a liga a determinadas reações químicas ocorridas na matéria. São todas respostas do mesmo homem para seu antigo problema da sede do saber. São todas respostas válidas em suas épocas e situações, uma não pode se impor à outra. A reposta do Gênesis não é científica, é poética. A resposta da ciência não é poética e nem mítica, é experimental.
Atualmente há três tendências de relação com a religião: A fé, o fundamentalismo e a indiferença. Por causa dos erros das pessoas de fé muitos se distanciaram da religião. Pois a religião foi perdendo a sua função de promotora humana para se tornar manipuladora ideológica e econômica. Muitos crentes usam a violência física e psicológica em nome de Deus para nivelar as pessoas e fazer aceitar a todo custo que seu ponto de vista é a verdade. O teólogo Leonardo Boff perguntou ao Dalai Lama[1] qual era a melhor religião, esperando ouvir que era o budismo. O sábio respondeu: “a melhor religião é aquela que te faz melhor”. A religião violenta é anti-humana.
O papel dos crentes é refletir sobre os verdadeiros valores de sua fé. Tudo aquilo que desvia do verdadeiro motivo do Evangelho é anticristão e antirreligioso. A religião é para promover a vida: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância, e a tenham em abundância” (Jo 10,10). A teologia hoje deve ser bem crítica, lúcida e atenta ao progresso da humanidade e deve apontar para uma religião simples, prática e humana. Por isso, é necessário pensar a fé para que não cometamos os mesmos erros do passado.
Relações entre ciência e fé
Quando se discute a relação entre ciência e religião, a saída mais sensata é a definição de papéis. No século XVI, Galileu Galilei (1564-1642) já chamava a atenção para esta diferença: “à ciência cabe dizer como vai o céu, e à religião como se vai ao céu”. A dificuldade de se separar a função da ciência e da função da religião foi a causa de muitas polêmicas no início da era moderna, quando a ciência começou a se definir como a entendemos hoje. Galileu foi pressionado a se retratar diante do tribunal da Inquisição, dizendo que era falsa a idéia de que a Terra girava em torno do seu eixo e em torno do sol.
Com a modernidade, a ciência desenvolveu métodos próprios de investigação e se tornou laica, isto é, independente da religião. Mas este processo foi lento e até hoje muitas pessoas ainda têm dificuldade em conciliar ciência e fé. Augusto Comte (1798-1856) defendia que o conhecimento humano passa por três estágios: o religioso, o filosófico e o científico. Na época religiosa, o homem explica os fenômenos recorrendo a causas sobrenaturais; na época filosófica, explica recorrendo a princípios racionais; na época científica, explica por meio das leis naturais, as quais explicam por si só os fenômenos. Porém, na prática as pessoas continuam vivendo esses estágios de maneira desigual.
As três grandes religiões do planeta, judaísmo, cristianismo e islamismo, passaram por resistência à ciência, mas seus segmentos mais esclarecidos atualmente aceitam as explicações da ciência e separam textos sagrados e teorias científicas. Os mulçumanos tiveram bons matemáticos e filósofos como Avicena e Averróis; os judeus nos deram nada menos que Albert Einstein, os cristãos nos deram Mendel, Hegel etc. Muitos homens de fé estudaram ciência sem criar conflitos.
No século XIX, até a Bíblia passou a ser lida cientificamente. Os pastores alemães Karl Bath, Paul Tilich e Rudolf Bultmann desenvolveram métodos para uma leitura crítica da Bíblia. A partir deste período os teólogos passaram a seguir semelhante visão. No século XX, a relação melhorou ainda, o arqueólogo jesuíta Teilhard de Chardin conciliou cristianismo e teoria da evolução. Na década de 90, muitos cientistas cristãos defendem a teoria do Design Inteligente.
Definição de Papéis
O ser humano é dado a exageros. Na Idade Média, a fé era considerada superior à razão (a verdade estava com a religião), na Idade Moderna, a ciência passou a ser considerada superior à religião, muitos cientistas se tornaram ateus (a verdade estava com a ciência), atualmente, é mais aceito que fé e religião são conhecimentos complementares do mundo (a verdade está com as duas).
Antes de qualquer debate que compare religião e ciência, é sensato observar. A ciência e a religião são duas formas de o homem se relacionar com o mundo. São duas maneiras de responder às suas indagações internas. Elas são complementares e não opostas. Seus papéis não podem ser tomados um pelo outro devido a diferença da natureza do conhecimento que há entre as duas. A religião é um conhecimento simbólico-místico, explica o mundo através de causas sobrenaturais. A ciência é um conhecimento racional-empírico, explica o mundo através das leis da natureza e da experiência. São duas respostas válidas. A religião deve se ocupar de questões relativas à fé ( “como se vai ao céu”) e a ciência da explicação da natureza e de seus fenômenos (“como vai o céu”).
Diálogo e contribuição das ciências
O crente do século XXI não pode medo ou preconceito em relação a outros saberes. É preciso ter uma abertura para dialogo com o diferente: seja outra religião, seja uma ciência. Existem várias visões de mundo, além do cristianismo. Alguns pontos são completamente diferentes. A filosofia niilista afirma que não existe a verdade. A parapsicologia diz que não existe o sobrenatural (milagres, espíritos). A ciência conta outra origem para o mundo: O universo iniciou-se de uma explosão (13,7 bilhões de anos), a vida surgiu pela reunião casual de moléculas (3,5 bilhões de anos) e o homem surgiu de um processo de evolução (200 mil anos).
As ciências auxiliares da teologia
A teologia não se faz somente pelo conhecimento advindo da fé, ela tem as conquistas das ciências humanas e naturais como pontos de apoio. São essas contribuições que mantém a religião atualizada e condizente com o mundo moderno. As principais ciências são: a filosofia, a psicologia, a história, a biologia, a sociologia e a parapsicologia. Elas ajudam a compreender fenômenos que somente pela fé não se obtém respostas satisfatórias. Neste sentido, afirmava o cientista Albert Einstein “a ciência sem a religião é manca; religião sem ciência é cega”.
Epistemologia da fé
O ser humano realiza sua faculdade de conhecer por diversos modos. Houve períodos na história que se priorizou ora um, ora outro. O homem é conhecido como um ser racional desde antiguidade. Hoje, porém, sabemos que a definição de homem é complexa: ele pensa e sente. Existe uma dimensão lógica, formal e real e existe outra sensível, simbólica e transcendental. A nossa mente conhece de forma conjunta usando sentimentos e pensamentos.
Os dois modos de conhecer que procedem da complexidade humana são a razão e a sensibilidade. A razão procura entender o mundo através da lógica e da ciência. A sensibilidade usa a intuição, os sentimentos, portanto, a fé. Mas conhecimento lúcido exige a participação das duas faculdades. A fé genuína tem de ser razoável, assim como a razão prudente tem de ser intuitiva.
Conceito de fé
Em hebreus 11, 1, lemos que “a fé é a substância das coisas que se esperam e o argumento das coisas que não se veem”. Tomás de Aquino[2] considerava essa afirmação como a mais completa definição bíblica da fé. É a vivência antecipada do que se espera, é a convicção sobre o invisível.
Segundo Libânio (2000, p.213), o ato de crer é graça de Deus, liberdade humana e tem uma racionalidade profunda. Aqueles que creem sem esforço da razão caem no fideísmo. Aqueles que procuram a razão em tudo caem no racionalismo. Outros transformam a questão em mera vontade, é o voluntarismo. Além disso, a fé tem uma base pessoal, mas também a influência da cultura, do espaço e da época.
A fé se relaciona com as duas outras virtudes: a esperança e o amor. Muitos procuram na fé uma certeza que passa por cima dos fatos. As características da fé são justamente uma experiência humana que mescla certeza e dúvida. A fé e a esperança andam juntas, quando se diz ter fé, quer dizer que se tem uma esperança dada por Cristo que ultrapassa todo desânimo e falta de sentido do mundo. Quando Pedro fala das razões da esperança, isso alcança também as razões da fé (BENTO XVI, Spe Salvi[3], 2).
O conteúdo da fé
Em que cremos? O conteúdo da fé é a revelação. (LAMBIASI, 1997). Segundo o Evangelho, crer em Jesus significa aceitar a pessoa e não meramente os seus ensinamentos. Portanto, a fé é em alguém e não em algo. A salvação provém da fé, ou seja, da aceitação dessa pessoa como um todo. A salvação é sempre salvação de algum perigo, nesse caso, é a preservação da grande esperança de que a vida possui um sentido pleno. A fé tem forma bíblica na expressão “Jesus é o Senhor”(Fl 2, 9-11).
A Igreja tomando essa revelação sintetizou todo o mistério de Cristo nas profissões de fé. A mais conhecida delas é o Credo apostólico recitado atualmente nas missas. A fé é pessoal, mas ao mesmo tempo eclesial. Ninguém crer sozinho (LIBÂNIO,2000). Inicialmente, os cristãos viveram e celebraram aquilo que acreditavam. Somente no século II, houve a necessidade de escrever uma fórmula que contivesse os princípios da fé. O texto mais antigo que se conhece é a Carta aos Apóstolos, entre 160 a 170 da Era comum, que possui artigos professando a fé na Trindade, na Igreja e no perdão dos pecados. Em 325[4], aparece uma versão definida em concílio, e depois completada em 381:
Creio[5] em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, gerado do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, da mesma substância do Pai. Por Ele todas as coisas foram feitas. E, por nós, homens, e para a nossa salvação, desceu dos céus: Se encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem. Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado. Ressuscitou dos mortos ao terceiro dia, conforme as Escrituras; E subiu aos céus, onde está assentado à direita de Deus Pai. Donde há de vir, em glória, para julgar os vivos e os mortos; e o Seu reino não terá fim. Creio no Espírito Santo, Senhor e fonte de vida, que procede do Pai (e do Filho); e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: Ele falou pelos profetas. Creio na Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. Confesso um só batismo para remissão dos pecados. Espero a ressurreição dos mortos; E a vida do mundo vindouro. Amém (DENZINGER, 1948).
Portanto, esta é a forma eclesial da fé, é uma resposta à pergunta “o que é o cristianismo?” “Em que creem os cristãos?”. A profissão é divida em partes: 1) fé na natureza e missão de Deus uno e trino; 2) fé na Igreja e em seus ensinamentos ; 3) fé na condição humana.
Revelação: fonte da teologia e conteúdo da fé
Dissemos que a fonte da teologia é a revelação. Portanto, a segurança do conteúdo da fé cristã é a Palavra, entendida como comunicação e evento. A Bíblia é o testemunho escrito desta revelação. “Este plano de revelação se concretiza através de acontecimentos e palavras intimamente conexos entre si, de forma que as obras realizadas por Deus na história da salvação manifestam e corroboram os ensinamentos e as realidades significadas pelas palavras” (DEI VERBUM, 2). Em síntese, a revelação é a comunicação de Deus e de sua vontade de salvar a todos e fazê-los participar da plenitude da vida (Id., 6). E a completude e a concretude desta revelação é uma pessoa, Cristo (Id., 4).
A teologia clássica entende o processo nas seguintes etapas: Deus se revelou (revelação), inspirou o homem a captar esta verdade e transmiti-la por escrito (inspiração) e finalmente, iluminados, compreendiam o que foi revelado (iluminação). À Igreja coube preservar e transmitir o conteúdo e a interpretação do que foi revelado (FERREIRA, 2005, pp.40-41).
A inspiração divina
A autoridade dos textos bíblicos reside na ideia de que eles foram inspirados pelo Espírito Santo. Portanto, neles contém a Palavra de Deus. O evento da inspiração já foi entendido de diversos modos: Teorias da intuição, da iluminação, do ditado e teoria dinâmica. A inspiração é a profunda comunicação entre Deus e o homem, que faz segundo perceber a presença e o apelo de Deus. Acima de tudo, é um acontecimento humano, pois o autor sagrado usa a sua inteligência, sua reflexão para transmitir a experiência de Deus. Não se pode entender o evento como um ditado direto de Deus ou uma “possessão” do Espírito Santo.
A transmissão e a interpretação
A transmissão foi através da sucessão apostólica. Ou seja, uma cadeia de pessoas que copiaram, conservaram e interpretaram os textos bíblicos ao longo da história. A Igreja possui quase dois mil anos de ação. A interpretação é feita primeiramente pelo Magistério, depois pela teologia. O magistério é a faculdade que os bispos reunidos e em consenso têm de interpretar a fé cristã. A assistência do Espírito Santo é compreendida no sentido de comunhão.
Historicidade da transmissão
O processo de registro e de transmissão da Revelação acontece dentro da realidade humana, dentro dos limites da cultura. A Bíblia gastou 1.100 anos para ser escrita. Os livros foram escritos bem depois dos fatos. Somente no século IV é que se decidiu quais livros eram inspirados. Os textos foram recopiados ao longo de 1.900 anos. Hoje restam 5.700 manuscritos repletos de divergências textuais. Portanto, a Bíblia é histórica, de difícil interpretação, motivo de muitos desentendimentos (EHRMAN, 2008, pp. 51-78).
Consequências da fé
A fé deve ser vivencial. Sem a prática ela perde o sentido de ser e se torna teoria sobre Deus, pois “a fé sem obras é morta” (Tg 2, 14-17). Mas antes de tudo é necessário ter uma clareza sobre que tipo de fé é sustentada. Ela deve ser bíblica e eclesial. Não ter medo de ser humana e se defrontar com a dúvida e o sofrimento. Por fim. Ela deve apontar para a vida e a felicidade e nunca justificar estruturas violentas. Porque as virtudes andam sempre juntas: “a fé, a esperança e o amor. A maior delas, porém, é o amor” (1 Cor 13, 13).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENTO XVI. Carta encíclica Spe salvi. Roma: Vaticano, 2007.
DEI VERBUM, Constituição Dogmática. Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos e declarações. Petrópolis: Vozes, 2000.
DENZIGER, Heinrich. Enchiridion symbolorum et definitionum. Barcelona: Herder editorial, 1948.
EHRMAN, Bart. O que Jesus disse? O que Jesus não disse? Rio: Ediouro, 2005.
FERREIRA, Júlio Andrade. Antologia teológica. São Paulo, Fonte editorial, 2005.
HARBIN, Christopher Byron. Introdução à teologia sistemática. Porto Alegre: 2007.
HERRERA, Jaime Morales. Patristica: los padres apostólicos y los apologistas. 2009.
LAMBIASI, Francesco. La estructura teológico-fundamental de la fe. Roma: Pontificia Universidad Gregoriana, 2007.
LIBÂNIO, João Batista. Eu creio, nós cremos: tratado da fé. São Paulo: Loyola, 2000.
[1] Dalai Lama é título do líder do budismo tibetano, cujo nome é Tenzin Gyatso.
[2] Tomás de Aquino (1225 – 1274) foi o maior teólogo da Idade Média.
[3] Spe salvi é latim e significa “Salvos pela esperança”.
[4] Nessa data aconteceu o Concílio de Niceia, o primeiro que envolveu toda a Igreja.
[5] Crer em grego se diz pistéuo e o sentido é “acreditar, confiar, ser convencido”.
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