1.
Qual
é a natureza do conhecimento teológico?
José
Aristides da Silva Gamito
Antes
de qualquer lição sobre a Bíblia e a Teologia, fazem-se necessárias algumas
considerações sobre a epistemologia do conhecimento religioso.O conhecimento
religioso não é exato como a lógica e a matemática. Quem procura uma
compreensão única e incontestável sobre um texto bíblico vai se decepcionar.
(a) Ninguém discorda que 4+6=10. (b) Ninguém discorda que o fogo queima. (c)
Mas existem dezenas de interpretação sobre um texto.
Qual é o problema que reside nestes
exemplos? Todos são conhecimentos e pretendem ser verdade. Mas são tipos
diferentes de conhecimento. As verdades matemáticas são universais e
independentes da experiência. A propriedade do fogo é natural, dependente da
experiência e é universal. Mas a interpretação de um texto é subjetiva, depende
da percepção de cada leitor. Embora, não seja impossível uma interpretação
consensual de um texto, mas isso dependerá do emprego de algum critério e do
sucesso que ele terá.
Portanto,
o conhecimento bíblico e teológico, mesmo sendo um conhecimento coletivo, ele é
ciência humana pautada na subjetividade e na historicidade. Não existe uma
única interpretação correta de um texto, há interpretações que respondem melhor
a determinadas questões. A prova mais direta da multiplicidade de interpretações
é a grande quantidade de Igrejas e de correntes teológicas.
O
leitor que se aproxima do Novo Testamento, querendo buscar uma fórmula correta
dos dogmas e da constituição de uma Igreja genuína, vai dar com os burros
n’água. O texto do Novo Testamento não é normativo. Ele não é um código com
leis de como deve ser o cristianismo. Nenhuma Igreja está descrita textualmente
na Bíblia. O Novo Testamento é um conjunto de discursos e relatos sobre uma
vivência de fé cuja personalidade central é Jesus. Além disso, ele se insere
numa literatura maior que é a do cristianismo primitivo. Quero dizer com isso
que há textos fora do Novo Testamento que relatam também as crenças dos
primeiros cristãos.
A
respeito da Bíblia em geral. Muitas dificuldades de leitura e de interpretação
do texto bíblico provêm da tomada do texto como um bloco homogêneo, contínuo e
coerente. Bíblia é um conceito editorial. O que temos é uma coleção de livros
diversos, descontínuos, mistos, com algum nexo temático. O texto bíblico é
polissêmico.[1]
Esta afirmação quer dizer que ele contém muitos significados. Uma perícope
(“trecho”) já contém muitos sentidos e aplicações, imagine toda a Bíblia! Se o
leitor recuperar a natureza do texto como literariamente ele é, muitos mitos
interpretativos serão dissipados.
Além
de entender que o texto bíblico é polissêmico, se você entender também a sua historicidade,
muita coisa vai melhorar. A historicidade quer dizer que o texto foi escrito
num tempo muito antigo, numa cultura diferente, com propósitos para aquele
tempo. Recuperar esta história, esta cultura e este propósito permitem
aprofundar a compreensão, mas só podemos atingir isso de modo aproximativo. Neste
ponto, entra a necessidade de conhecimentos preliminares ou paralelos para
interpretar o texto (teorias literárias, línguas, história, geografia,
princípios exegéticos e hermenêuticos).
De onde vem a diferença de interpretação
entre as Igrejas? Para começo de conversa o cristianismo foi um espaço de
diversidade desde o começo. Não existe um cristianismo genuíno e puro. Existem
cristianismos dentro do cristianismo. O que foi acontecendo ao longo da
história é a quebra da comunhão, as igrejas foram se dividindo e se
multiplicando. Os irmãos de fé se transformaram em “concorrentes” e depois em
“inimigos”. No fundo, todos querem defender uma verdade. Mas muitos desconhecem
que a verdade não supõe resposta única e uniforme.
A
abordagem apologética da Bíblia não é uma boa leitura, mesmo que se torne
necessária em alguns momentos. As diferenças entre católicos e protestantes são
lógicas. As interpretações e as doutrinas são diferentes porque eles partem de
premissas diferentes. Na lógica, se mudo as premissas, necessariamente, eu
altero a conclusão. Primeiramente, eles seguem cânones bíblicos diferentes
(cânone alexandrino e cânone palestinense). Segundo, eles têm como regras de fé
fontes diferentes. A reforma protestante é minimalista.
Ela optou pelas fórmulas de fé mais curtas: Cânone breve, menos sacramentos e a
bíblia como única regra de fé (Sola
Scriptura). O catolicismo é maximalista.
Sempre optou por fórmulas mais longas: Cânone mais longo, mais sacramentos eduas
fontes como regras de fé (a Bíblia e a Tradição).
Estas
considerações epistemológicas são indispensáveis para a relação entre
catolicismo e protestantismo. Dadas estas informações, você perceberá que um
confronto de ideias entre essas duas vertentes do cristianismo é inútil. Quando
eles debatem pormenores dogmáticos, nunca chegarão a um consenso lógico porque
estão discutindo a partir de premissas distintas. O convencimento e a migração
de um sistema para outro resulta da aceitação de troca de premissas. Isso
depende muito da experiência subjetiva. Mudar de perspectiva em relação à
verdade não é só uma questão de lógica, é também uma questão afetiva. Portanto,
depende de aceitação, o convencimento lógico não funciona sozinho. Até porque,
no caso da religião, não se trata de uma ciência exata.
Se
o debate apologético resolvesse alguma coisa, todos seriam de uma única igreja.
Se houvesse uma única forma de compreensão verdadeira, também estariam todos
juntos. Estamos falando no âmbito da racionalidade, apelar para uma intervenção
divina é outro debate. Em termos práticos, o estudo da Bíblia e da Teologia são
importantes para o crente, mas o que prevalece no final é a prática moral de
cada um. Isso não depende de tipo de Igreja e nem de corrente teológica. O
conselho de Agostinho é prudente: “Nas
coisas essenciais, a unidade; nas coisas não essenciais, a liberdade; em todas
as coisas, a caridade.”
A
título de recapitulação, amarremos alguns pontos. Como exercício introdutório
aos estudos teológicos e bíblicos, devemos ter em mente estes princípios: 1. O conhecimento religioso não é exato
como a lógica e a matemática; 2. O
cristianismo se fundamenta sobre textos; 3.
A interpretação de textos, de modo semelhanteao conhecimento religioso, não é
uma ciência exata; 4. O texto
bíblico é polissêmico e histórico, isto é, contém muitos sentidos e distancia
de nós no tempo e no espaço; 5. A
mudança de premissas resulta em conclusões diferentes; 6. Catolicismo e protestantismo partem de premissas diferentes,
portanto, possuem doutrinas diferentes; 7.
A natureza histórica do cristianismo é a da diversidade; o único caminho que
pode unir a todos é a caridade.
2.
Os
desafios da interpretação bíblica
A Bíblia constitui uma
fonte escrita de testemunhos de uma experiência de fé. O leitor contemporâneo
depara com este texto e confia que suas palavras são autênticas. Normalmente, o
que move a confiança no testemunho do texto é a fé. Porém, entre o leitor
contemporâneo e a Bíblia existem alguns desafios. A interpretação bíblica não
tem como ignorá-los.
A distância temporal é o primeiro desafio. O texto bíblico está
separado de nós por 1.900 anos. Isto significa que o mundo era outro. A
concepção de religião, de sociedade, de política, de moral, de tudo era
diferente. Os costumes eram totalmente diferentes. Além disso, os fatos
narrados não foram redigidos no mesmo tempo que aconteceram. Muitos autores
foram testemunhas oculares, outros escreveram a partir das tradições orais.
A distância cultural é o segundo desafio. O Antigo Testamento foi
escrito dentro da cultura semita. O Novo Testamento também o foi, mas com
contribuições do mundo greco-romano. O antigo Israel era um povo de costume
agrário. A maioria das pessoas era analfabeta. Religião e política andavam
juntas. Muitos costumes e normas só podem ser entendidos dentro daquelas
culturas.
A distância geográfica é o terceiro desafio. Os lugares que são
descritos nos textos bíblicos fazem parte de uma geografia distante de nós. Os
nomes, as divisões políticas já mudaram muito ao longo do tempo. Em cada época
retratada no Antigo Testamento, por exemplo, a situação geopolítica era
diferente.
A distância idiomática é o quatro desafio. Os autores bíblicos
escreveram nos idiomas de sua época. São línguas que não mais faladas. Sua
sintaxe era diferente e também suas figuras de linguagem. As características
dessas línguas estão presentes nas traduções que lemos. Temos de nos lembrar
que não lemos os textos originais.
Portanto, o leitor
precisa se munir de instrumentos de interpretação porque ele está lendo um
texto que foi escrito para outras pessoas, que viveram em lugares, em tempos e
em culturas diferentes. O leitor não pode simplesmente transpor suas categorias
culturais para o texto.[2]
3.
A
importância dos instrumentos da hermenêutica
O
ato de ler é um processo de decodificação de uma mensagem. Utilizamos
convenções tanto para escrever quanto para ler. Considerando que o texto
bíblico é antigo e distante de nós temporalmente, espacialmente e culturalmente,
precisamos de um instrumento para nos ajudar a “superar” esta distância e nos
aproximar do sentido do texto. A hermenêutica é justamente este instrumento.
A
hermenêutica busca explicar o sentido do texto. A fim de que este objetivo seja
alcançado existem alguns princípios e regras para a melhor compreensão de um
texto. Esta discussão nos permite pontuar duas coisas. Primeiro, qualquer
pessoa alfabetizada pode ler o texto bíblico e qualquer leitor pode dar um
sentido para ele. Segundo, mesmo que todos possam lê-lo e atribuir-lhe um
sentido, somente na companhia de bons instrumentos podemos nos aproximar melhor
do sentido do texto.
Portanto, com qualquer
leitura atenta podemos atribuir um sentido para um texto. Mas, a hermenêutica
está preocupada com o melhor sentido no que diz respeito à aproximação do
sentido que o texto tinha na época em que foi escrito. Trata-se de uma
interpretação que o contexto e a cultura originais do texto permitem.
Existem muitos debates
sobre o papel do intérprete. Dentre eles, há preocupação com a intenção do
autor, o sentido que o leitor da época compreendia. É uma tarefa difícil de ser
idealizada. Mas, de qualquer modo, interpretar exige uma relação entre o leitor
do nosso tempo com o texto/autor da antiguidade. Utilizo a expressão texto ou
autor porque há um intenso debate sobre quem estamos abordando na
interpretação.
Quem se aproxima da
área dos estudos bíblicos precisa ser advertido de que não estamos lidando com
ciências exatas. A interpretação de um texto também varia ao longo do tempo e
do lugar onde situa o leitor. Além disso, os textos ganham diferentes
aplicações dependendo do contexto.
4. A polissemia textual e o
desenvolvimento dos dogmas
Já
informamos que a Igreja Católica faz derivar seus princípios de fé de duas fontes
que são a Escritura e a Tradição. Embora, alguns teólogos afirmem que o
Concílio Vaticano II superou a defesa de duas fontes. O texto da Dei Verbum afirmaria dois modos de uma
única fonte.[3]
Para aprofundar neste tema, temos de esclarecer um ponto. A prática eclesial
antecede o Novo Testamento. Se considerarmos que Jesus
morreu por volta do ano 29 e o Novo Testamento terminou de ser escrito por
volta do ano 100, temos de admitir que é a comunidade primitiva que gera as
Escrituras e não o contrário. Se o debate for posto a partir do nosso tempo,
tomaremos o Novo Testamento para normatizar a prática eclesial.
A
tradição produz igualmente a Escritura e a Tradição. Na perspectiva católica,
não tem como entender a Escritura sem a Tradição. É justamente, a Tradição que
interpreta a Escritura e formula os dogmas a partir destes princípios.
Depreende-se isso do qualificativo que já mencionamos: o Novo Testamento não é
normativo. Quando dizemos isso, afirmamo-no em um sentido geral, porque o
leitor poderá encontrar códigos domésticos e eclesiais nas cartas do Novo
Testamento. Portanto, que se reserve o sentido da nossa aplicação à
inexistência de uma fórmula literal de como deverá ser constituída a Igreja e
seus dogmas.
A
Igreja permitiu, por necessidade de estruturação e da conservação da comunhão,
a resolução de pontos divergentes de doutrina por meio dos concílios. Os
concílios foram reuniões que contribuíram para a definição de dogmas que
constituem a Tradição. Existem muitas práticas católicas que foram rejeitadas
pela Reforma Protestante porque não eram diretamente bíblicas.
As
crenças e as práticas tradicionais se baseiam no sensus fidelium(sentido dos fiéis).[4]
Juntamente, com o Magistério (depósito e intérprete da Tradição) está o sensus fidelium. Este corresponde à
prática coletiva dos fiéis que se torna um costume a ser seguido localmente ou
por toda a Igreja. Esta possibilidade vem do comportamento da Igreja Católica
que sempre permitiu a inculturação da fé nas diferentes comunidades espalhadas
pelo mundo inteiro.
Para manter a ortodoxia
e a comunhão, a Igreja Católica fez um duplo movimento: Manteve uniforme um
conjunto de princípios sob a autoridade eclesial (Magistério) e permitiu a
inculturação de práticas nas realidades locais (sensus fidelium). São estas práticas os diversos sacramentais, os
terços, as novenas, as procissões, as devoções, os símbolos e gestos
litúrgicos. Isto permitiu a simultânea universalidade e localidade da Igreja,
mas também gerou um conjunto amplo de práticas e de tradições. Este é o
paradoxo do catolicismo: simultaneamente, democrático e autoritário. Por causa
disso, os reformadores adotaram o princípio da parcimônia aplicado aos cinco
solas.
Quando falamos em
Tradição teríamos de falar em Tradição e tradições. A Tradição apostólica diz
respeito ao conjunto de artigos de fé e de dogmas dos primeiros séculos que
foram expressos, vivenciados pelas comunidades e confirmados nos concílios
ecumênicos. As tradições dizem respeito, por sua vez, a todas as práticas
litúrgicas, sacramentais e devocionais que foram se desenvolvendo ao longo da
história em diversas dioceses. Com os termos Tradição e tradições, quero dizer
que o Magistério e o sensus fidelium
operam junto para construir o que é a Igreja Católica contemporânea.
Então, quando se
discute no âmbito da apologética se algum princípio ou dogma é ortodoxo, temos
de perguntar se se refere às Escrituras ou à Tradição. O princípio da dupla
fonte católica põe premissas diferentes na definição da ortodoxia. Já as
igrejas reformadas operam com a única fonte solista. Mas, não significa que
elas sejam totalmente independentes de alguma tradição. Elas também criam
tradições ao longo do tempo, apenas não as têm como regra de fé.
Além da polissemia
textual das Escrituras permitir várias enfoques e formas de doutrinas, as
tradições eclesiais também desenvolveram diferentes prioridades para suas
confissões de fé. Esta característica das instituições humanas torna cada vez
mais difícil o consenso entre as igrejas.
Referências
KLEIN,William W., BLOMBERG, Craig
L., HUBBARD JR, Robert L. Introdução à
Interpretação Bíblica. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017, p.
76-80.
LUI, Lukas. A Igreja do Espírito de Deus que nasce no coração do povo. A
relevância e o desafio do sensus fidei na Constituição dogmática Lumen Gentium
do Vaticano II. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica, Rio
de Janeiro, 2010, p. 6
RIBEIRO, Ari Luís do Vale. A
superação da doutrina das "duas fontes”. Revista de Cultura Teológica - v. 16, n. 64, 2008, p. 47-73.
5.
As
fontes de doutrina no cristianismo primitivo
Em torno do Concílio Vaticano II, houve um
movimento de preocupação como retorno das práticas eclesiais do cristianismo
primitivo. A referência da Igreja para a ortodoxia é a comunidade apostólica.
As crenças originais do cristianismo foram desenvolvidas pelos primeiros
cristãos sob a autoridade dos apóstolos. Jesus não escreveu seus ensinamentos.
Só temos acesso aos seus ensinamentos através do testemunho dos apóstolos.
O Novo Testamento é uma fonte testemunhal
de fé. É neste sentido é que se diz que a Igreja é apostólica. Portanto, a
doutrina ortodoxa só pode ser buscar dentro dos ensinamentos do cristianismo
primitivo:
A denominação ‘cristianismo
primitivo’ compreende o período que vai da morte de Jesus em 33 A.D até a
chamada “conversão de Constantino” (306-337), ocorrida ao que parece no ano de
337 d.C. Este período pode ser dividido em três fases: a) a primeira fase está
situada entre época da vida de Jesus até o ano 100, data em que a maioria dos
contemporâneos de Jesus já havia falecido; b) a segunda fase vai do ano 100ao
ano de 250, no momento em que o Cristianismo se propagava fora da Palestina,
principalmente nas províncias romanas mais antigas (Síria, Ásia Menor, Egito e,
é claro, pela Itália, especialmente em Roma), sem, no entanto, constituir uma
religião universal; e c) o terceiro momento abrange a época em que o
Cristianismo foi mais intensamente perseguido pelo Estado romano (entre 250 e
311) até sua aceitação como religião do Estado imperial romano a partir de 391.[5]
O cristianismo primitivo pode ser
compreendido nesta abrangência mais ampla, isto é., de 33 até 391. Ou segundo
outros autores que procuram delimitar este período, o cristianismo primitivo
compreenderia uma fase até pouco mais depois do ano 100. De qualquer modo, a doutrina ortodoxa do
cristianismo teria de ser buscada no período apostólico, pós-apostólico e nos
concílios ecumênicos.
Quais seriam, portanto, as fontes da
ortodoxia? Poderíamos tomá-las a partir de duas abordagens: uma reducionista e
outra não-reducionista. A reducionista admitiria que a ortodoxia envolvesse
apenas os dogmas e as crenças circunscritas ao período do Novo Testamento. Já a
abordagem não-reducionista estenderia o processo da formação da ortodoxia até o
final do século IV. No caso da Igreja Católica, os novos costumes e tradições
continuaram se desenvolvendo por muitos séculos. Compreender os dogmas cristãos
sem a história do cristianismo fica difícil.
Há muitas crenças que vão além do Novo
Testamento. Portanto, a tese da Sola
Scriptura só pode ser sustentada como única fonte de fé, mas não como uma
dispensa do conhecimento dos textos do cristianismo primitivo. Eles são
necessários para compreender o que a Igreja se tornou e porque existem
diferentes tradições eclesiais. Além disso, o Novo Testamento não contém a
solução do Cânon. Ela é uma questão exterior ao texto.
São fontes importantes para a compreensão
da ortodoxia: a) O próprio texto do Novo
Testamento; b) Os escritos dos Pais
da Igreja (consensus patruum) e
c) As decisões dos concílios ecumênicos.
É claro que isso torna os dogmas e a prática eclesial mais complexa. Os setes
primeiros concílios são chamados de ecumênicos. São os concílios que foram realizadas
estando as Igrejas do Oriente e do Ocidente em comunhão. Esta sequência de decisões
para toda a Igreja Antiga. São eles: Primeiro Concílio de Niceia (325), Primeiro
Concílio de Constantinopla (381), Primeiro Concílio de Éfeso (431), Concílio de
Calcedônia (451), Segundo Concílio de Constantinopla (553), Terceiro Concílio
de Constantinopla (680), Segundo Concílio de Niceia (787).
Todos estes concílios são exemplos da
atuação da Tradição do Magistério definindo os dogmas e as práticas eclesiais.
Há muitas questões que foram formuladas durante estas reuniões e não estão
explicitamente definidas no texto do Novo Testamento. Esta é a razão pela qual
a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa não seguem a tese da Sola Scriptura. Os concílios foram necessários para garantir a
unidade da Igreja. Muitas questões de fé foram motivos de divergências.
A primeira tentativa de consenso para as
divergências foi o Concílio de Niceia, em 325. Havia muita controvérsia a
respeito da encarnação de Jesus e da Trindade. A síntese mais antiga e original
da fé foi expressa no Símbolo Niceno-constantinopolitano. Vamos examinar a
crença dos primeiros cristãos a partir dos credos.
Referência
CALDAS, Marcos. Vida e Morte no
Cristianismo Primitivo. Revista
Cantareira, Revista Eletrônica de História, v.1, n. 3, Ano 2, 2004.
6.
Em
que criam os primeiros cristãos?
6.1. Introdução
O movimento do
cristianismo teve início logo depois da morte de Jesus. Os apóstolos animados
pelas últimas palavras de Jesus (Mt 28,19), partiram de Jerusalém e seguiram as
rotas do Império Romano para divulgar a nova fé. Mas, bem lá no começo os
cristãos formavam apenas uma seita dentro do judaísmo. A diferença entre os
judeus ortodoxos e os cristãos era a aceitação de Jesus como o Messias. O culto
cristão acontecia dentro das sinagogas. O judaísmo do século I d. C. estava
dividido em várias partidos/seitas como os fariseus, saduceus, zelotas e
essênios. Inicialmente, o cristianismo era apenas mais um grupo. A ruptura
entre cristianismo e judaísmo acontecerá de modo mais definitivo após a
destruição do Templo de Jerusalém no ano 70.
Quando o cristianismo
sai do ambiente da Palestina, inicia-se uma missão de conquistar as cidades
mais influentes do mundo romano. O cristianismo deixa de ser um movimento
camponês para ser um movimento religioso urbano. Ao longo deste processo de
conquistas de novos adeptos, a fé cristã entrou em contato com as centenas de
religiões que eram seguidas no Império Romano. Um dos maiores desafios das
primeiras lideranças cristãs foi manter uma crença original e fiel à tradição
dos apóstolos.
Nos primeiros séculos,
os cristãos se encontraram divididos entre gnósticos, marcionitas,
valentinianos e maniqueus. Isso somente para citar alguns nomes. Alguns
escritores dos séculos I e II que denunciaram as heresias enumeram diversos
grupos. Epifânio de Salamina, um escritor do século IV, cita 46 grupos na sua
obra Panarion. Na verdade, existiam igrejas diversas e não uma única igreja.
Porém, havia um esforço pela unidade em torno do conceito de tradição
apostólica. Como a diversidade cultural era grande e as distâncias geográficas
eram igualmente enormes, manter uma fé uniforme mostrava-se bastante
desafiador. Apareceram, então, as heresias. São elas crenças cristãs que se
diferiam da tradição apostólica.
6.2. A tradição dos apóstolos
Quando as igrejas
apostólicas se viram desafiadas pela grande variedade de ensinamentos que
divergiam da tradição apostólica, começaram a formular os credos. Os credos,
símbolos ou profissões de fé são provas da crença dos cristãos antigos. Eles já
são, no entanto, resultado de uma evolução da fé daqueles primeiros cristãos da
época dos apóstolos. A fórmula básica de profissão de fé do começo da pregação
apostólica era: “Jesus é o Senhor” (Fl 2,11).
Afirmar que Jesus é o Senhor significava alterar profundamente o credo
judaico fundamentado em Deuteronômio 6,4 (“Escuta, Israel, o Senhor nosso Deus,
o Senhor é um só”).
A afirmação de que
Jesus é o Senhor é o divisor de credo entre cristãos e judeus. Isso significa
postular que Jesus é igual a Deus. A crença na unicidade de Deus (monoteísmo
absoluto) não permitia ao judeu crer na fé trinitária que desenvolveu mais
tarde no cristianismo. Os credos se desenvolveram todos como um desdobramento
da fé na trindade.
A Carta dos Apóstolos,
um texto escrito por volta de 160-170, apresenta o conteúdo da fé cristã nestes
termos:
no Pai dominador
do Universo,
e em Jesus
Cristo, [nosso Salvador],
e no Santo
Espírito [Paráclito],
e na Santa
Igreja,
e na remissão
dos pecados.[3]
In Patrem
dominatorem universi,
Et in Iesum
Christum [salvatorem nostrum],
Et in Sanctum
Spiritum [Paraclitum],
Et in sanctam
Ecclesiam,
Et in
remissionem peccatorum.
Este antigo credo se
divide em cinco artigos: 1º - a fé em Deus que domina o Universo; 2º - em Jesus
Cristo como Salvador; 3º - na Igreja; 4º - no perdão dos pecados.
A mais famosa profissão de fé é o Símbolo dos
Apóstolos. Seu conteúdo é aceito pela maioria das igrejas cristãs. Segundo uma
lenda, o texto teria sido composto pelos doze apóstolos. De acordo com Ian
Mcfarland, a versão atual difundida do Credo Apostólico teve origem no sudoeste
da França nos fins do século VI ou início do século VII. Ele é uma versão
modificada do Credo Romano Antigo que data do começo do século III e serviu de
base para os demais credos.
O
uso do Credo Apostólico foi difundido durante o período de Carlos Magno para
uniformizar a liturgia.
6.3. A Trindade
O primeiro artigo dos credos é a profissão de fé em Deus Pai. O núcleo
da fé cristã é a crença de que Deus é uno e trino. O tratamento de Deus
enquanto Pai, Filho e Espírito Santo aparece no Novo Testamento. Isto
corresponde ao período de 50 até 100 depois de Cristo. Os primeiros já
expressavam através destas palavras, mas a explicação e o desenvolvimento de
termos próprios para tratar desta doutrina surgiram somente mais tarde.
A ocorrência mais antiga deste termo Trindade (em grego, Trías) aparece
na obra “Autólico” de Teófilo de Antioquia por volta de 170 d. C. [4] O
escritor Tertuliano utiliza a palavra Trindade dizendo que: “Como se estivesse
desta forma também não foi tudo, em que todos, pela unidade (isto é) de
substância; enquanto o mistério da dispensação ainda está guardado, que
distribui a Unidade em uma Trindade, colocando em sua ordem, as três Pessoas -
o Pai, o Filho e o Espírito Santo”.[5]
No Novo Testamento, há muitas menções dos três nomes divinos: Pai, Filho
e Espírito Santo. Jesus é compreendido como o filho de Deus no episódio do
batismo (Mt 3, 16-17). O evangelista
João retrata as palavras de Jesus ao falar da promessa do envio do Espírito
Santo como pessoas distintas: “Mas, quando vier o Consolador, que eu da parte
do Pai vos hei de enviar, aquele Espírito de verdade, que procede do Pai, ele
testificará de mim.” (Jo 15, 26). Neste texto, o Pai, o Filho e o Espírito
Consolador têm atividades diferentes.
Portanto, os textos do Novo Testamento expressam a identidade divina
através dos nomes do Pai, do Filho e do Espírito. Porém, a doutrina da Trindade
foi desenvolvida somente a partir do século II.
Mas até início do século IV as formulações dos credos eram apenas locais.[6]
A síntese da fé cristã se desenvolveu a partir das práticas litúrgicas. Os
rituais de batismo continham um questionamento do candidato sobre a fé que
estava processando. Geralmente, iniciavam com três perguntas ao candidato ao
batismo: “Crês em Deus Pai? Crês em Jesus Cristo? Crês no Espírito Santo?” A
preparação catequética dos cristãos antigos consistia no conhecimento de um
formulário semelhante aos credos. Mas as fórmulas apareciam também na
eucaristia e no rito de exorcismo.
A partir dos concílios, houve um esforço para superar as divergências
doutrinárias entre as igrejas antigas. O concílio de Niceia formulou um credo
com o propósito de ser válido para toda a Igreja.[7] A definição sobre a
doutrina fundamental do cristianismo aconteceu de modo coletivo a partir do
concílio de Niceia (325 d. C.) e de Constantinopla (381 d. C). As declarações
destes concílios foram sintetizadas no chamado Credo
niceno-constantinopolitano.
A compreensão da identidade e da natureza do Pai e do Espírito Santo não
foi objeto de tanta discussão, mas a pessoa de Jesus Cristo foi alvo de muita
disputa. A negação da divindade do
Espírito Santo. Um grupo chamado de pneumatômacos negava esta condição.
Surgiram várias explicações e doutrinas para explicar como Jesus era homem e
deus ao mesmo tempo. Estas são as chamadas controvérsias cristológicas. Os
credos de Niceia e de Constantinopla foram elaborados para porem fim aos
debates que dividiam os cristãos.
Compreender como Jesus era homem e deus era desafio para muitos
cristãos. Segundo Apolinário de Laodiceia (310-390), Jesus teria um corpo
humano, mas sua mente seria divina. Ário (256-336) negava que Jesus fosse
divino, considerava-o somente uma criatura humana. O primeiro Concílio de
Constantinopla condenou estas doutrinas afirmando que Jesus era completamente Deus
e completamente homem. Este concílio, em
seu credo, define Jesus como “consubstancial ao Pai”. Esta expressão significa
que Jesus e Deus possuem a mesma substância ou essência.
A relação entre o Pai, o Filho e o Espírito é o compartilhamento da
mesma substância. Deus pai é o criador de todas as coisas. O Filho foi gerado
pelo Pai. Já o Espírito Santo procede do Pai. Essas conclusões levaram muitos
anos de debate para serem formuladas.
6.4. A Igreja
Outra crença proclamada pelo Credo é na Igreja. A profissão nos termos: “Creio... na Santa
Igreja Católica” reafirmava a comunhão de todos os cristãos em torno de uma
mesma fé. Porém, quando se falava na “Igreja Católica” não estava se referindo
de modo restritivo à Igreja Católica Romana. Nos primeiros séculos do
cristianismo, havia não havia distinção.
Na versão de Hipólito de Roma, há a inclusão da palavra “apostólica”
juntamente com a palavra “católica”. Esta necessidade é para reafirmar que a fé
verdadeira reivindicada pelos cristãos tinha como fundamento as tradições
ensinadas pelos apóstolos. Os credos tinham esta função também de combater
grupos que tinham uma fé heterodoxa. Outro adjetivo que também aparece é “una”.
É comum em todo estudo sobre a Igreja apresentar as quatro qualidades
distintivas dela: Unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade. Estes
adjetivos foram incorporados no Símbolo de Constantinopla em 381 e são
reflexões originais de São Cirilo de Jerusalém. A liturgia conservou costume de
professar a fé durante as missas, no texto a assembleia repete que acredita na
Igreja Uma, Santa, Católica e Apostólica.
Igreja Uma: A Igreja se define pela unidade dos fiéis em torno de Cristo
professando uma só fé, um só batismo, um só Deus, uma só esperança em um só
corpo e um só espírito (Ef 4, 4-5). A unidade é a qualidade fundamental da
Igreja porque o grande desejo de Jesus foi a comunhão de todos os seus
seguidores: “Pai santo, guarda-os em teu nome que me deste, para que sejam um
como nós” (Jo 17, 11). A unidade da Trindade é o modelo de comunhão desejado
para a Igreja. Quando se fala desta unidade/comunhão não se deve confundir com
uniformidade. A Igreja sempre conteve em si a diversidade. Ela é comunhão de Igrejas.
Cipriano de Cartago na obra De Unitate
Ecclesiae (A Unidade da Igreja) usa a imagem da luz para descrever a
unidade da Igreja, muitos são os raios, mas uma só é a luz.
Igreja Santa: A Igreja é constituída de pecadores. A santidade é porque
todos participam da graça de Jesus, são chamados à santidade e conservam em si
o auxílio necessário para ser santo. É um conceito teológico. Isso não
significa que não haja pecados individuais e reais na Igreja.
Igreja Católica: A Igreja nasceu aberta a todos os povos. Diferentemente
do judaísmo que era uma religião nacional, o cristianismo surge como uma
proposta universal. A palavra católico
quer dizer “universal, para todos”.
Igreja Apostólica: A apostolicidade revela a natureza da Igreja. Ela nasce
sob a autoridade do testemunho dos apóstolos que aprenderam diretamente de
Jesus o Evangelho e são autoridades morais e históricas para fundar, expandir e
conduzir a Igreja. Não é possível fala de Igreja autêntica sem levar em conta
sua origem apostólica.
6.5. A Salvação
A respeito da salvação e do destino do homem, os credos geralmente
terminando com afirmações sobre o julgamento final. Será um julgamento no final
dos tempos dos vivos e dos mortos. Proclama-se a fé também na ressurreição dos
mortos e a vida eterna, nos termos do credo niceno-constantinopolitano:
“Esperamos a ressurreição dos mortos; e a vida do mundo vindouro.”
Referências:
KELLY, J. N. D. Early Christian Creeds. London; New
York: Continuum, 2008.
ANTIOCH,
Theophilus of. Ad Autolycum. In:
SCHAFF, Philip. Fathers of Second Century.
TERTULLIANUS. Adversus Praxeam. In: SCHAFF, Philip.
Latin Christianity: Its Founder, Tertulian.
[1]Os estudos literários empregam o
termo polifonia. O uso de polissemia e a polifonia quer dizer que nos textos há
várias vozes e significados.
[2]KLEIN,William W., BLOMBERG, Craig
L., HUBBARD JR, Robert L. Introdução à
Interpretação Bíblica. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017, p.
76-80.
[3] RIBEIRO, Ari Luís do Vale. A
superação da doutrina das "duas fontes”. Revista de Cultura Teológica - v. 16, n. 64, 2008, p. 47-73.
[4] Há três termos
inter-relacionados: a) sensus fidei
(sentido da fé) – é a percepção individual da fé; b) sensus fidelium – é a prática comum dos fiéis; c) consensus fidelium – é a concordância
universal em matéria de fé (LUI, Lukas. A
Igreja do Espírito de Deus que nasce no coração do povo. A relevância e o
desafio do sensus fidei na Constituição dogmática Lumen Gentium do Vaticano II.
Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro,
2010, p. 62.)
[5] CALDAS, Marcos. Vida e Morte no
Cristianismo Primitivo. Revista
Cantareira, Revista Eletrônica de História, v.1, n. 3, Ano 2, 2004.
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